quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Sermão de Santo António aos Peixes: a intemporalidade das palavras de Vieira


Olá!


Vos estis sal terrae - Mateus, 5 (vós sois o sal da terra)

Muitas vezes os alunos questionam-se: "Mas para que é que eu tenho ler isto? É uma seca!". Pois é, nem sempre somos capazes de, numa primeira abordagem, perceber aquilo que está para além das linhas que lemos. Importa sermos capazes de ler nas "entrelinhas", procurando o verdadeiro significado da mensagem que ali se tenta passar.

Outrora, muitos dos nossos escritores viram-se forçados a "escrever em código", pelos mais variados motivos: ou porque o seu público não demonstrava interesse, ou porque a censura os inibia de dar asas ao seu pensamento e o famoso "lápis azul" eliminava tudo o que fosse contra a suposta moral estabelecida. Muitas vezes os autores sentiam-se obrigados a mudar de "púlpito e de auditório", numa tentativa de chamar a atenção de todos aqueles em a quem a cegueira impedia que vissem a verdadeira mensagem. O Padre António Vieira foi um deles.

O "Sermão de Santo António aos Peixes", obra cativante, que remonta ao ofuscante período Barroco, dá-nos um belíssimo testemunho do poder da escrita. Com uma grande habilidade oratória, Vieira recorre à alegoria para tecer duras críticas ao comportamento humano. Em pleno século XVII, os colonos portugueses viviam cegos com o brilho sedutor da riqueza proveniente das colónias portuguesas. Pregado no Maranhão, este sermão de que hoje vos falo retrata o lado mais irracional do Homem, capaz das piores atrocidades, em busca de uma riqueza que apenas o corrompe.

Partindo do conceito predicável "Vós sois o sal da Terra", Vieira retrata o comportamento dos peixes, que, metaforicamente, representa o do Homem, revelando o seu lado bom e o menos bom (alegoria). Efectivamente, a inteligência humana não foi suficiente para interpretar as palavras deste grandioso orador, decidindo ignorar as suas palavras. Por isso, à semelhança do maior pregador de todos os tempos, Santo António, Vieira deixa a terra e vai-se ao mar, em busca de um público interessado em ouvi-lo. Recorrendo a uma construção literária fabulosa, o autor deste sermão revela-nos uma sociedade parasita, que explora o lado menos humano do Homem em prol de uma riqueza fácil. Os mais fracos e oprimidos (como as comunidades indígenas do Brasil) eram explorados por todos aqueles que não olhavam a meios para alcançar os seus fins. Vivia-se num verdadeiro parasitismo, onde imperava a "lei do mais forte". Mas, a uma distância de cerca de quatro séculos, estará a nossa sociedade tão diferente da que foi caracterizada por Vieira? Seremos hoje pessoas mais humildes, prontas a ajudar os mais fracos? Viveremos hoje numa sociedade onde a ganância e a corrupção estão extintas? Creio que não e, como afirmava Vieira, "ainda mal".

Esta é, sem sombra de dúvidas, uma obra intemporal, que continua a retratar a nossa sociedade, cuja sede de riqueza, poder e ostentação continua a criar muitos polvos, roncadores e pecadores, como no tempo de António Vieira.
P.S. - Já agora vale a pena dar uma vista de olhos aqui.
Um abraço.

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